quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A IGREJA E A PERVERSÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL


“Pois nunca deixará de haver pobre na terra; pelo que te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra” Dt 15,11
“Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes”
Jo 12:8
Desigualdades existem de todas as formas e matizes, mas nenhuma possui um caráter tão universalizante quanto a social, e isto, mesmo com a humanidade conquistando todo o progresso científico, tecnológico e de conhecimento jamais visto. As relações sociais evoluíram também juntamente com as instituições políticas. No entanto, mesmo nesta modernidade, “a democracia cria, no plano formal, uma igualdade perante o Estado e as Leis. No plano legal ou abstrato, todas as pessoas são iguais, mas no plano concreto das relações sócias, são desiguais”[1]. Com a persistência de pobres, historicamente, no mundo, defendo que a desigualdade, esta perversão, é um “atributo” da natureza humana caída.
Quando Jesus declara que a pobreza é algo perene nas sociedades, parece um fatalista, mas prefiro ver a sua declaração como uma constatação; uma análise dura, fria, nua e crua da realidade social, como Maquiavel o fez no tocante às relações de poder. O florentino ao estudar com bastante realismo o continuum da história, vociferou que as relações políticas são sem escrúpulos, imorais, interesseiras e continuariam sendo assim pelos séculos, dos séculos, amém.
O Antigo Testamento também constata a realidade da pobreza. Está abarrotado de textos falando sobre os despossuídos, do necessitado, com leis expressas sobre eles. Fato curioso, porém, é que não se encontra nenhum “esforço” nos textos para uma solução "definitiva" diante da miséria, e sim, uma espécie de tratamento misericordioso para com o pobre, auxiliando-o em sua condição. Os pobres estão aí e precisam de cuidados. (Ex 22:25; 23:6; Dt 15:7; 24,12; Sl 82:3; Pv 22,22)
Mais intrigante do que o fato de que sempre existiram pobres no mundo, é que isto resiste às melhores soluções para o problema. Nem a ideia de democracia grega, nem a influencia da igreja por mil anos na idade média com suas ordens mendicantes, nem a Reforma Protestante com sua idéia de sacerdócio universal de todos os santos, nem as revoluções burguesas do séc XVIII, nem a instituição do Estado de Direito, nem a social-democracia, nem o socialismo soviético, nem a ONU, nem A UNESCO, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nem as atuais “políticas sociais” parecem se tornar um inimigo eficaz ante esta perversão da desigualdade social. Os pobres continuam a povoar a terra e se encontram bem próximos de nós.
Lendo Atos dos Apóstolos, apenas podemos vislumbrar um lapso neste continuum fatídico da indiferença; um instante frágil, tênue e milagroso na história da igreja, onde poderíamos perceber o que seria uma sociedade de iguais, sem necessitados:
E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns (Atos 4:32)
Também observa-se o modus operandi da ação, ou seja, a maneira de como eles lidavam com a solução da questão:
Não havia, pois, entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos, e repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha. (Atos 4: 34,35)
Podemos ler mil vezes este texto, mas algo dentro de nós resiste veementemente a ele. Repartir será sempre uma superação à nossa natureza mesquinha, pois somos temerosos à igualdade. Existe um sem número de interpretações para este evento de Atos, boa parte delas quer nos fazer crer que este sistema faliu cedo, com a comunidade logo voltando ao ideal da propriedade privada e ao acúmulo. De qualquer forma, este texto deveria fazer-nos rever tudo o que sabemos e fazemos no tocante à economia, sustento e distribuição na igreja. A solução que o Novo Testamento dá ao problema da desigualdade impressionou até o líder revolucionário cubano, o qual percebeu a similaridade que existe entre o pensamento cristão e o ideal marxista. Ao receber uma Bíblia, no Chile, Fidel observou: “Aqui le­mos muitos exemplos de conduta tipicamente comunista… Cristo, multiplicando os peixes e os pães para alimentar o povo, é um belo exemplo… Nós não temos a resposta de Cristo. Mas, basea­dos na sua doutrina, tentamos fazer a mesma coisa: dar pães e peixes a todos!” (encontrado em http://www.cacp.org.br/o-comunismo-marxista/).
Também gosto muito deste texto, por várias razões. Uma delas é que, de pronto, ele exclui a ordem capitalista, pautada no determinismo econômico, na exploração do lucro, na competitividade, e na sobreposição dos interesses individuais sobre os da coletividade. O bem comum do capitalismo realmente não é o público, mas o privado, o particular, enquanto que a igreja é comunitária em tudo o que é e faz. Da mesma forma, ele exclui a ordem comunista que, em tese, advoga uma igualdade linear, uniforme, de identidade e semelhança, alheia às diferenças e capacitações do ser humano, rico em potencialidades. É claro que a igreja não advoga nem o capitalismo, nem o comunismo porque trata o problema da desigualdade com orientações que não são humanas, mas divinas
A ordem de Êxodo 16 e de Atos 4 visa uma vida coletiva onde a distribuição é proporcional à riqueza ou à pobreza de cada um. O propósito da igreja não era uniformizar as classes, nem produzir uma classe pequena de privilegiados que acumulam riqueza. Ananias e Safira não foram "obrigados" a vender sua propriedade, e sim, acabar com os necessitados, o que se traduziria no simples fato de que, os que possuem, os "abastados", deveriam repartir, de maneira espontânea, sem coação. Aqui, vê-se também que todo ato voluntário e espontâneo de doação é movido pela atuação do Espírito Santo na vida do crente. 
É verdade que não durou muito este modelo de Atos, mostrando que é da natureza humana produzir desigualdades. Logo as viúvas gregas estavam sendo distinguidas das judias e preteridas na distribuição do alimento (Atos 6:1); Em Corinto Paulo tem conhecimento de que a refeição da comunhão – o que chamamos de “santa ceia”, outros “eucaristia”, etc - era um pretexto para badernas e mais desigualdades ainda nas reuniões, pois até os que tinham boa condição financeira e comida em casa, não permitiam que os pobres se aproximassem da mesa (1Co 11: 21-29). Longe de ser “pecados ocultos”, como é a interpretação tradicional deste texto, é precisamente a desordem e o desprezo pelos pobres, que Paulo chama de “comer e beber indignamente, não discernindo o Corpo do Senhor” (ICo 11:34).
Insisto neste ponto: é atípica e antinatural a distribuição. A regra que parece ser natural é o acúmulo e a avareza, uma característica da perversão da condição humana. É contra este mal, que a partilha deve ser exemplificada, como Jesus o fez no milagre da multiplicação (Mc 6:38 ) e a coleta para a ajuda às igrejas mais pobres é digna de muito louvor, porque é um ato excepcional (2Co 8:1-4):
Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus que foi dada às igrejas da Macedônia, como, em muita prova de tribulação, a abundância do seu gozo e sua profunda pobreza abundaram em riquezas da sua generosidade, Porque, dou-lhes testemunho de que, segundo as suas posses, e ainda acima das suas posses, deram voluntariamente, suplicando-nos, insistentemente, o privilégio de participarem deste serviço a favor dos santos
Aqui Paulo vê na solidariedade com a condição do outro, a graça de Deus agindo nos irmãos da Macedônia, dando a entender que a distribuição não é um princípio humano e seu impulso é tão somente divino. Por que nós não conseguimos ver “graça” de Deus em alguém que partilha seus bens e ajuda aos necessitados? Porque o “natural” é a auto sobrevivência e a autopreservação. A avareza é tal que, quem a pratica será condenado juntamente com o adúltero, o ladrão, o bêbado, o caluniador e o trapaceiro (1Co 6:10). Ela é diametralmente oposta ao Deus que doou o próprio filho e que "a todos dá liberalmente, e o não lança em rosto" (Tg 1:5). Nas listas de condenação o avarento tem cadeira cativa (Mc 7:22, Rm 1:29, ICo 5:10, Ef 5:3, 2Tm 3:2, Cl 3:5, 2Pe 2:3,14, Hb 13:5).
Mas essa leitura passa despercebida por muitas igrejas – diria a maioria – no Brasil, justamente um país de desigualdades agudas, de condições extremas de pobreza. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, o país possui 16,2 milhões de miseráveis[2]. Talvez, a igreja brasileira acredite que o problema da pobreza deva ser dever do Estado e que é irrelevante para sua agenda.
Não foi o caso da igreja dos primeiros séculos, onde a diaconia era traduzida em assistência nas epidemias, na hospitalidade aos estrangeiros, na partilha dos bens, na compra de órfãos e escravos indesejados, na ajuda as viúvas, náufragos e presos, como recomendava um antigo documento:
Não repelirás o indigente, mas antes repartirás tudo com teu irmão, não considerando nada como teu, pois, se divides os bens da imortalidade, quanto mais o deves fazer com os corruptíveis (Didaqué, p. 27)
É necessário, pois, haver uma política social na igreja conforme a justiça distributiva do maná: “quando mediram com o jarro, quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco. Cada um recolheu tanto quanto precisava” (Ex 16:18). Provavelmente a igreja de Atos 4 estava seguindo à risca a mesma ordem quanto à distribuição, e Paulo ecoa o mesmo princípio em 2Co 8:15: “como está escrito: Quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco". Não era à toa que a igreja tinha “a simpatia de todo o povo” (Atos 2:47). Partilhar, isso sim, é um verdadeiro milagre; um incontestável sinal do Reino de Deus entre os homens.
Para concluir, “Ad Fontes!” era uma expressão latina que os humanistas da Renascença utilizavam para demonstrar que aquele modelo de visão de mundo eclesial, obsoleto, obrigava-os a buscar novas interpretações da vida, da existência, da ciência, arte e cultura, relendo os clássicos gregos e latinos. Penso que, no contexto evangélico atual, no que se refere aos pobres e necessitados, também estamos precisando, urgentemente, reler, sem nenhuma edição, Jesus e os apóstolos. Precisamos retornar, pois, ao Ad Fontes!!!
Portanto, responsabilidade social não é mais um, dentre os vários programas da igreja, de ajuda esporádica a moradores de rua e indigentes, mas a sua própria condição de existência, sem a qual ela mesma é descaracterizada em mais uma empreendedora instituição humana sobre a terra, preocupada com suas propriedades e suas despensas.


[1] Revista Filosofia, Ciência e Vida, Ano III, no. 36. Entrevista com Antonio Carlos Mazzeo.
[2] O conceito de miséria foi estabelecido oficialmente pelo governo federal, que resolveu considerar em estado de pobreza extrema quem ganha até R$ 70 por mês. Encontrado em http://noticias.uol.com.br/politica/2011/05/03/brasil-tem-162-milhoes-de-pessoas-em-situacao-de-extrema-pobreza.jhtm

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A MEDIAÇÃO DE CRISTO COMO SUPERAÇÃO DO SACERDÓCIO DE ARÃO E DO CULTO LEVÍTICO NO CRISTIANISMO

Este texto é um excerto do artigo "Jesus e a dessacralização do templo, sacerdócio e oferta" já publicado neste blog. Lá, a tese de que a espiritualidade cristã não depende de geografia santa (templo), de uma aristocracia religiosa(classe sacerdotal) e de ofertas especiais consagradas por ambos(templo e sacerdote) tem como argumento o fato de que, em Cristo tais instituições se encarnaram nEle e, depois, em quem "está" nEle baseado em IPe 2:5. Aqui, a tese é a desconstrução do sacerdócio levítico e araônico a partir do fato de que Cristo assume uma nova ordem sacerdotal diversa da mosaica-araônica-levítica, qual seja, a ordem de melquisedeque.

A consagração dos sacerdotes e a instituição do culto levítico é um dos eventos mais importante da religião de Israel. Não menos significativo, isto se dá juntamente com a promulgação da Lei da Aliança mosaica no Sinai e a ordem para que se construísse a tenda do Encontro, lugar do ofício sacerdotal, do culto, das festas e da aplicação das leis (Ex 20). O templo e a classe sacerdotal eram imprescindíveis para que a religião funcionasse e fosse efetiva na vida do povo. Não é difícil imaginar o valor e a importância que estas instituições sagradas tinham na vida dos judeus. Israel vivia em função de sua religiosidade, tanto que os impérios ao invadi-lo e, sabendo que a nação girava em torno do templo, destruía-o. Talvez, na história das colonizações de outras nações, a estratégia determinante em destruir o lugar de culto e liturgia fosse parte do processo de dominação. Mas com Israel isso era recorrente. A Babilônia, Antioco Epifânio e os Romanos entenderam assim. Destruíram o lugar de convergência, o que lhes era mais precioso. Dito de outra forma, na cabeça de um israelita, não havia como desligar o sacerdócio araônico, a lei mosaica e o culto levítico da sua vida com Deus .

Mas para o autor da epístola aos Hebreus, mesmo crescido na tradição judaica, não há dificuldade nenhuma em abandonar a forma de sua religião ancestral, cultural e familiar. Ele vê novas perspectivas na espiritualidade, outra forma de se relacionar com Deus que não era a da religião dos seus pais, totalmente superada com o advento de Cristo, pois segundo ele a aliança mosaica, com seu sacerdócio, leis e culto estava “antiquada”, “envelhecida” e “prestes a desaparecer” (Hb 8.13). Mas, o que colocar no lugar, que referências teria ele agora? Em Melquisedeque, ele vê um fator simbólico, uma "sombra"" de Cristo. Será este o modelo de superação do antigo sacerdote, do antigo líder e do antigo culto. Uma nova era, uma nova espiritualidade, uma nova liturgia, uma nova mediação, novos serviços espirituais brotaram no seu entendimento.

Melquisedeque é a figura mais enigmática da Bíblia e, segundo CULLMANN, “sua pessoa alimentou desde a antiguidade a imaginação dos judeus”[1]. As informações sobre ele são mínimas, ele é descrito apenas em Gn 14 e no Salmo 110 e hermeneuticamente aplicado a Jesus na epístola aos Hebreus, especificamente no capítulo 7 que, para muitos estudiosos, compõe o cerne da epístola.

O texto bíblico em que se assenta o argumento desse artigo diz

que necessidade havia logo de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e não fosse chamado segundo a ordem de Arão?... Porque aquele de quem estas coisas se dizem pertence a outra tribo, da qual ninguém serviu ao altar, visto ser manifesto que nosso Senhor procedeu de Judá, e concernente a essa tribo nunca Moisés falou de sacerdócio (Hb 7.11, 13, 14, ARA)

Esta superação vétero-testamentária é razoável sob o argumento de Hebreus que mostra que Jesus é sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque(Hb 5.6, 6.20), este, como assevera o autor da epístola, maior que Levi(Hb 7.1-17). No que consiste essa asseveração e quais os argumentos para sustentar tal tese, deveras radical e, do ponto de vista dos cristãos judeus, essencialmente herética? Segundo o autor, posto que Jesus era da tribo de Judá, donde nunca “Moisés atribuiu sacerdotes”(Hb 7.14) e não da tribo de Levi, há mudança no sacerdócio e também na lei (v.12), como também a instituição dos sacerdotes não é mais arônica (v.11) - nem de qualquer casta dos Hebreus. O autor da epístola enfatiza o escandaloso fato de que Melquisedeque nem mesmo participa da consangüinidade dos irmãos de Levi, ou seja, da genealogia hebréia[2] (Hb 7.6). Assim, o sacerdócio de Cristo é qualquer outra coisa, menos levítico ou mesmo de continuidade judaica. Na verdade, Jesus “não foi feito segundo a lei do mandamento carnal, mas segundo a virtude da vida incorruptível” (Hb. 7.16). Qual seria o modelo então do novo ordenamento sacerdotal? Seria, segundo Hebreus, que do mesmo modo que o Sumo Sacerdote Levítico gerava outros sacerdotes segundo a lei, assim o Sumo Sacerdote Jesus geraria sacerdotes segundo a ordem de Melquisedeque? E qual seria seus aspectos fundamentais? A orientação que Jesus deu aos discípulos quanto à liderança? Como seria uma liturgia que não fosse levítica, sem o sacerdócio araônico e seus rituais?

O autor, não satisfeito também utiliza o argumento da hierarquia espiritual. Quem ousaria dizer que, no que se refere à religião, havia alguém maior que Abraão, e ainda assim de uma terra Cananéia? É esta prova de superioridade de Melquisedeque sobre Abraão, que o autor de Hebreus demonstra: o patriarca e Levi, ainda não nascido, deram o dízimo e foram abençoados (Hb 7.4, 9) por este estranho e enigmático personagem. O autor assevera ainda o argumento da primazia. Este argumento é o mesmo que Jesus utilizou para mostrar que era superior a Abraão, e, por conseguinte a Moisés, em João 8.58 “Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou”. É o mesmo que Paulo utiliza quando demonstra a superioridade da fé conforme a promessa em relação às obras da lei, na epístola aos Gálatas. A promessa tem uma primazia de quatro séculos diante da lei pois "uma aliança já anteriormente confirmada por Deus, a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode ab-rogar, de forma que venha a desfazer a promessa" (Gl 3.17). Segue-se a mesma lógica ao ligar a figura de Cristo ao sacerdócio de Melquisedeque: a ordem de Melquisedeque é maior que a de Levi, pelo simples fato de Abraão ter sido abençoado por este enigmático sacerdote e dar-lhe o dízimo; dessa forma, Levi, que depois iria ter o privilégio e a obrigatoriedade de cobrar os dízimos de seus irmãos, "pagou-os na pessoa de Abraão"(Hb 7.9) a este rei de salém. Além do que, pelo fato do patriarca dar-lhe dos despojos como dízimo, o autor conclui que este Melquisedeque era maior que Abraão, pois "abençoou o que tinha as promessas... Evidentemente, é fora de qualquer dúvida que o inferior é abençoado pelo superior" (Hb 7.6,7). De maneira que tanto a promessa, quanto a ordem sacerdotal de Melquisedeque é instituída antes, no tempo, e assim, superior à lei, ao ordenamento levítico e até mesmo à nobreza escatológica da ascendência davídica ao messiado. A epístola aos Hebreus, antes de ser somente contrária ao templo, está interessada em demonstrar a obsolescência da religião bíblica atrelada ao templo e ao culto levítico em princípio.

Segundo CULLMAN (2002, 119, 120), o salmo 110, donde é citado Melquisedeque é, no mínimo intrigante, posto que Jesus o utilize duas vezes em situações onde é posto um contraste com dois poderosos arquétipos judaicos: a) A filiação davídica do Messias e b) ao sacerdócio judaico. Ao que Jesus rejeita tanto um quanto o outro. Diz ele:

Trata-se, primeiro, da pergunta feita aos escribas a respeito do Filho de Davi(Mc 12.35ss)...podemos supor que Jesus fala de si mesmo. Se tal for o caso – e bem parece que seja assim, em razão do contexto e da intenção segundo a qual Jesus cita o Salmo – isto seria de suma importância para o conhecimento da consciência que Jesus tinha de si mesmo: ele saberia ser o Rei-Sacerdote “segundo a ordem de Melquisedeque”... a segunda passagem em que Jesus cita o Salmo 110 é mais clara. Trata-se de sua resposta ao sumo sacerdote em Mc 14.62. Jesus uniu aqui, em um só pensamento, Daniel 7 e o Salmo 110: “vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus vindo sobre as nuvens do céu”. O “estar sentado à direita” liga-se indissoluvelmente à imagem do rei-Sacerdote “segundo a ordem de Melquisedeque” Não é significativo que Jesus aplique a si mesmo a palavra relativa ao Sumo Sacerdote eterno no preciso instante em que comparece diante do sumo sacerdote judaico, que o interroga sobre a pretensão do seu messiado? Por sua resposta subtende-se que o seu messiado não é o do Messias Nacional que os judeus esperavam; mais ainda: não reivindica nem a função de sumo sacerdote terreno que tem diante de si; senão que quer ser o Filho do Homem celestial e o Sumo Sacerdote celestial. Esta resposta é, pois, paralela à que dá a Pilatos no evangelho de João (18.36): diante do representante terreno da autoridade, afirma que Sua soberania não é deste mundo; frente ao sumo sacerdote terreno, afirma que também o Seu sacerdócio não é deste mundo

Paulo partilhava desse entendimento do autor de Hebreus? Poderíamos utilizar a epístola de Romanos ou Gálatas para mostrar que Paulo considera Cristo o nosso grande libertador da lei mosaica; no entanto, com excelente poder de persuasão, ele se assemelha muito ao autor de Hebreus quando usa os argumentos no texto de IICo 3. Podemos dizer que Paulo fala de um novo testamento (IICo 3.16) e cita a tradição que recebeu sobre a nova aliança (ICo 11.25). No entanto, partindo de outros pressupostos para demonstrar que o “ministério” mosaico é ultrapassado pelo “ministério” de Cristo, Paulo serve-se de “muita ousadia no falar”(IICo 3.12) tanto quanto Hebreus. Sua comparação dos dois ministérios não deixam dúvidas. O antigo foi escrita “em tábuas de pedras” com “tinta”; sua prescrição “mata”; os sacerdotes levíticos são ministros “da letra”; Moisés oficiou um “ministério da morte”, mesmo, um “ministério da condenação”; o mesmo teve a sua glória desvanecente. Em contraposição ele exalta os aspectos do novo serviço de Cristo; este é uma “carta escrita no coração”, “pelo espírito do Deus vivente”, em “tábuas de carne, isto é, nos corações”, seus ministros oficiam o “espírito que vivifica”. Seu “ministério é o da justiça”; sua glória é “sobreexcelente” e “permanente”. E conclui dizendo que todo aquele que ainda está debaixo da Velha aliança com Moisés tem um véu sobre seus sentidos: “Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelado que, em Cristo, é removido, mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles” (IICo 3.14,15).

Ora, diante do exposto, não há como evitar sérios questionamentos sobre a reflexão e práticas cristãs: em que consiste precisamente esta ordem de Melquisedeque? Se o culto levítico, com toda a sua liturgia e o seu ordenamento sacerdotal não são mais o modelo de espiritualidade ou liturgia, o que seria agora? Quais paradigmas seriam adotados? Que liturgia seguir? O que podemos aprender com a igreja primitiva? Há pistas dessa nova forma de espiritualidade? A partir disso quais as relações entre os Dois testamentos? E quanto à igreja no decorrer dos séculos, a despeito de Cristo, nossa liturgia continua levítica baseada na mediação sacerdotal araônica, ligada ao templo? Se Cristo nos fez sacerdotes conforme o novo ordenamento, que mediação seria esta? O que nos compete? Quais serviços seriam estes?.

É importante notar que, na esteira do que foi dito, os principais princípios neotestamentários evocados por Paulo e o autor de Hebreus para demonstrar sua primazia sobre a lei e o culto levítico- a fé, a promessa e a ordem de melquisedeque - tem algo admiravelmente em comum: todos são contemporâneos à Abraão, ou seja 400 anos antes de Moisés, Araão e Levi. Aqui, também é importante ressaltar que a espiritualidade de Abraão tinha muito mais elementos universalistas do que a regionalidade levítica. Abraão era peregrino, portanto, não dependia de um templo geograficamente localizado; era sacerdote de si mesmo, pois onde se instalava erguia um altar e, ele mesmo, oferecia sacrifícios a Javé, sem nenhuma censura deste. Ora, é a fé de Abraão e a promessa feita a ele que Paulo se utiliza para mostrar em que a espiritualidade cristã se assenta; da mesma forma o autor de Hebreus utiliza-se da figura de Melquisedeque para superar o culto araonico e levitico.

A questão é que transcorreu-se o tempo e a história tem comprovado que, seja no Catolicismo, seja no Protestantismo, seja no evangelicalismo, pentecostalismo, neo pentecostalismo ou em qualquer outra moda cristã ou forma de culto, ainda estamos extremamente presos ao culto do templo, dependentes dos sacerdotes e necessitados dos ritos ofertórios para sermos agradáveis. Ironicamente, a religião que se esforça para que estes elementos não mais façam parte de sua espiritualidade é o Espiritismo Kardecista.

No entanto, é difícil aceitar tais verdades quando o templo, o sacerdócio e as ofertas tornaram-se mecanismos de poder, enriquecimento e manipulação na igreja. Desvencilhar-se deles seria muito caro para uma estrutura complexa, hierarquicamente rígida e luxuriosamente construída.



[1] Cristologia do Novo testamento, pg 114

[2] Gn 14.18. Salém, antiga Jebus, viria a ser Jerusalém ou Sião. Sem maiores explicações, Melquisedeque já era sacerdote do Deus Altíssimo em Jerusalém, 900 anos antes mesmo de esta ter sido conquistada por Davi (ICr 11.4-9) e ter se tornado o centro espiritual de Israel e a cidade escatológica por excelência.

CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Ed Custom, 2002.