quinta-feira, 17 de setembro de 2009

VÍCIOS POLÍTICOS NA VIDA DA IGREJA

“Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo” (Mt 20.25-27).

“Se dar bem sempre e tirar vantagem em tudo” é a chamada Lei de Gérson que estigmatizou a cultura brasileira. O problema é mesmo cultural, vem das raízes da colonização e da formação do Estado brasileiro. Um país que possuiu Senhores de Engenho, Coronéis e Ditadura Militar não poderia cultivar na sua alma outra coisa senão os abusos do mandonismo e da arbitrariedade de sua classe política. Será por isso que a maioria dos meus colegas pastores acha a democracia o pior dos governos? E não será por isso que a igreja evangélica brasileira está caminhando, cada vez mais, para regimes monárquicos do que os do diálogo e consenso?

Há quem defenda que o certo seria a igreja adotar a teocracia, que era a forma de governo que Deus tinha para com Israel. Porém, estes que argumentam assim, não percebem a transição radical entre os dois testamentos e o “salto qualitativo” em termos de espiritualidade entre Velha e Nova Aliança(assunto que tratarei em um post futuro). Em nenhum texto neotestamentário encontra-se respaldo para um modo de viver da igreja adotando um modelo de poder do VT; pelo contrário, o que vemos é a individuação do cristão no exercício de seu sacerdócio para com Deus, por meio de Cristo. Paulo fala de uma “liberdade em Cristo” (Gl 2.4, 5.1, 13); pena que a igreja só entenda tal liberdade somente a de espíritos malignos, do pecado e do “mundo” e não de consciência. Lutero, em parte, ainda tentou resgatar isso com a “descoberta” do sacerdócio de todos os santos, que o fez arvorar a bandeira de um poderoso movimento de luta pela liberdade; mas isto está esquecido nas mais densas brumas do passado.

A igreja faz parte da história e nela também vive influenciada. Exemplo disso é o fato do cristianismo do ocidente já ter sido império no medievo, ter herdado a institucionalização e a burocracia das entidades civis, pra não dizer que, hoje, se submete à lógica de mercado, à divisão de classes, ao consumo e louvor ao capitalismo. Práticas estas que são contrárias aos ensinamentos de Jesus e dos princípios do Novo Testamento. Na minha opinião, boa parte do pastorado brasileiro tornou-se um projeto de classe aristocrata, burguesa e política com todas as benesses que este título pode exaurir, sem nenhuma proposta alternativa ao estilo de vida de privilégios, desigualdade e exploração que estão aí desde a fundação da nação.

Como na sociedade, a igreja é um lugar propício de possibilidades de relações políticas; os que tentam defender a tese de que o fazer eclesiástico é isento de política, caem na ingenuidade de acreditar que a política pode ser retirada da vida. Ora, Aristóteles já dizia no sec. V a.C., o homem é zoo politikon, “o homem é um animal político”, porque vive nas relações, e estas demandam uma prática política com toda a sua lógica que lhe é peculiar. Em qualquer lugar onde haja pessoas, e isto inclui a igreja, temos a necessidade de argumentação, debate e discussão. A igreja é a comunidade dos santos, mas também é uma unidade política da qual o indivíduo faz parte; nela há relações de poder, de interesses, hierarquia e partidos, principalmente aquelas que adotam o governo democrático com assembléias e deliberações pelo voto.

Do cenário político brasileiro listaremos apenas os vícios onde vemos uma identificação clara com as práticas de alguns líderes eclesiásticos da igreja brasileira:

1. Coronelismo. Símbolo de autoritarismo e impunidade. Expediente corriqueiro em algumas igrejas brasileiras; pastores exercem atitudes de mando, achando que detém o poder de vida e morte sobre as pessoas, amaldiçoando-as ou abençoando-as como bem lhes convier. É preciso lembrar-lhes que a autoridade que eles exercem sobre as pessoas é limitada, uma vez que quem está em Cristo já é abençoado (Ef 1.3) e não pode ser amaldiçoado (Nm 23.23; Ez 18; Gl 3.13; Tg 3.10). Além do que, o apóstolo Pedro ordenou que quem pastoreia não deve ser dominador do rebanho(1Pe. 5.2,3).

2. Clientelismo. Relação política onde uma pessoa recebe de outra proteção ou privilégios ou obtenção de benefícios em troca de apoio incondicional. Como nota característica o cliente fica em total submissão ao patrão, independentemente de com este possuir qualquer relação familiar ou empregatícia. Esta é uma prática corriqueira em algumas denominações em época de eleição. Conforme a recompensa, o pastor se torna um verdadeiro cabo eleitoral, manipulando o rebanho para o voto no candidato/partido patrão.

3. Dinastia. Pastores que constroem impérios eclesiásticos, com altas somas na arrecadação, não querem abrir mão destes e acabam convencendo os filhos a continuarem a linha sucessória, herdando a herança; um bom exemplo bíblico a não ser seguido é Diótrefes (3 Jo. 1.9).

4. Patrimonialismo. “Esta é a minha igreja e estas são minhas ovelhas” é o refrão dos tais. Pastores também confundem o público com o privado, ou seja, pensam ser dele o que é do povo; Propriedades e contas bancárias da igreja acabam se tornando patrimônio pessoal. Daí, o fato de alguns líderes se desligarem de suas convenções e fundarem ministérios independentes. Os tais alegam divergência de administração ou de visão, mas na verdade eles se convencem de que são donos da igreja; No entanto, a única pessoa que tem direito de usar os pronomes possessivos “minha igreja” e “minhas ovelhas” é Jesus (Mt 16.18; Jo 10.14,27); Paulo, quando se referia à comunidade dos crentes dizia “a igreja de Deus” (Atos 20.28; ICo 1.2; 10.32; 11.16; 2Co 1.1; Gl 1.13; 1Tss 2.14; 2Tss 1.4; 1Tm 3.15) e quando se referia aos próprios crentes dizia “servo alheio” (Rm 14.4) ou “servos de Cristo” (Ef 6.6) numa clara consciência de que não possuía poder patrimonial sobre eles.

5. Nepotismo. Pastores também “empregam”, com benesses, seus parentes em cargos eclesiásticos. Há igrejas que sustentam não só a família do pastor, o que é bíblico e justo, mas todos os seus parentes e aderentes. Estes são incentivados a assumirem algum cargo eclesiástico para justificar a renda. Daí pode-se vislumbrar que existe muita gente no ministério, executando funções sem vocação alguma, apenas como estratégia de "tudo ficar em família”.

6. Personalismo. O personalismo se caracteriza pela exacerbação do culto a si ou das ações pessoais, frente ao conjunto dos seus liderados. O líder imprime sua marca frente à igreja, onde esta passa a viver em torno de sua “persona” e não dos ideais do Reino. Não é preciso muito esforço para perceber o culto à personalidade em alguns líderes eclesiásticos no Brasil, onde páginas na internet, folders, cartazes, botons e banners gigantes são veiculados com as estampas de seus sorrisos;

7. Caudilhismo. O caudilho é o líder que se perpetua no poder seja por consecutivas reeleições ou por mandato vitalício. Em geral ele é autocrático e carismático ao mesmo tempo e detém uma relação estreita e emocional com seus adeptos apesar de sempre legislar em causa própria ou de particulares. Seu carisma, embora nem sempre transferível em caso de sua morte, pode ser estendido para parentes, como esposa e filhos. O caudilho sempre prefere a ditadura à democracia.

É difícil ser cristão com essa brasilidade. O país precisa de uma revolução ética, não somente entre a classe política, mas no povo em geral. Além desses vícios políticos, praticados anos a fio no Brasil, poderíamos apontar outras distorções parecidas no meio eclesiástico que ferem até mesmo a prática civil, como por exemplo, o desvio de finalidade de dízimos e ofertas, onde os quais deveriam ser revertidos para a comunidade, são usados para fins nada espirituais. E na onda da megalomania de políticos que constroem castelos, temos líderes que - seguindo uma teologia ultrapassada do Velho Testamento, na qual Deus “mora” num determinado lugar construído - utilizam-se do falacioso argumento salomônico: “um palácio para Deus”, ou outro mais enganoso ainda: “um grande Deus, merece um grande templo”, para construírem verdadeiras “Torres de Babel”, que estão mais para tornarem seus nomes célebres sobre a terra (Gn 11.4), do que para qualquer propósito do Reino de Deus. Estes estão totalmente na contramão da verdade que Tiago expressou em sua defesa contra o Sinédrio afirmando que “o Altíssimo não habita em templos feitos por mãos de homens” (Atos 7.48).

Diferente da “igreja primitiva” que vivia uma revolucionária “contracultura” contestando os valores vigentes do Império, vida política e vida eclesiástica estão cada vez mais numa relação simbiótica no Brasil. Muitas igrejas, na sua administração, estão politicamente incorretas, influenciadas pelas origens de nossa história. Outro aspecto dessa relação é que a igreja é pública - pois se enquadra na natureza de associação do Código Civil – porém, muitas delas não são transparentes nos seus negócios, incluindo aí os movimentos para-eclesiásticos e ministérios afins. Muitos líderes se aproveitam da situação de isenção legal e da autonomia que a igreja usufrui ante o Poder Público, arvorados na subserviência de seus membros em não exercer nenhuma espécie de fiscalização ou contestação de seus feitos, a maioria não dá satisfação do que fazem com o dinheiro arrecadado e nem das decisões que tomam, por mais arbitrárias que sejam; além do que, não publicam nenhum relatório em nenhuma mídia(denuncia que já fiz em outro post), qualquer que seja. Ora, é fato que a publicidade dos atos, é pré-requisito para um ministério íntegro. Mas transparência é tudo o que alguns líderes não querem tal qual uma boa parte de deputados e senadores. Pelo menos o governo faz uma média permitindo um site como o Transparência Brasil (http://www.transparencia.org.br) e, neste quesito, ele leva vantagem sobre a igreja que não tem a quem dar satisfação.

Prova do que aqui está escrito são as chamadas “verbas ocultas” amparadas pela aprovação da última lei eleitoral onde, prestar contas da arrecadação e do destino das verbas de campanha foi proibida, ou seja, a lei não permite que o eleitor saiba quem financia, quanto e onde é usado o dinheiro, pelo menos até o dia da eleição. Ora, num lugar secreto e sem controle só há cultivo e fomento de abusos. Por isso, sempre reelegemos até aqueles que, acusados de todo tipo de crime político, estão "se lixando para a opinião pública".

No caso da igreja, o problema é que por alguns, todos pagam. Com tanto em comum com a politicagem brasileira, não é a toa que as representações sociais sobre a pessoa do pastor é das piores possíveis. Ele é sempre visto como um aproveitador, mercenário, trambiqueiro, um representante oficial de negócios escusos, embora um grande número sejam realmente "homens de Deus", que procuram a realização de seus ministérios honestamente. O fato é que, tal qual a imagem do Senado, a dos líderes da igreja brasileira precisa ser resgatada "pois certos indivíduos se introduziram com dissimulação, os quais, desde muito, foram antecipadamente pronunciados para esta condenação, homens ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo" (Jd 1.4). As pessoas precisam ver em nós, não um lobo com peles de ovelhas ou um mercenário prestes a tirar-lhes o último tostão, mas homens comprometidos com os valores do Reino, dispostos a servir a humanidade, como o exemplo do Mestre.

Por fim, da parte dos membros, assumirem uma atitude acrítica e submissa diante desse quadro, sob o pretexto de que, de outra maneira serão estigmatizados pelo líder como “rebeldes”, “desobedientes” e “endemoninhados” é, no mínimo, ingenuidade, para não dizer burrice. Resta-nos acreditar que um dia o Brasil vai consolidar-se como um país verdadeiramente democrático sem a corrupção e a desigualdade que corrói o povo como câncer; que as próximas gerações alcancem instituições honestas, transparentes e confiáveis, para que a igreja também seja beneficiada enculturando tais práticas. Por enquanto, resta-nos orarmos dizendo “Deus salve a nossa pátria e as nossas igrejas também”.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A IGREJA E O ESPÍRITO PÓS-MODERNO



Li em algum lugar, com muita propriedade, que a igreja deveria ter muito cuidado em atrelar suas verdades às filosofias seculares, porque, caso estas fossem ultrapassadas, aquelas também iriam à bancarrota. Mas como é muito difícil viver sem absorver o meio, a igreja, muito corriqueiramente, acaba por assimilar e pegar carona nas inovações seculares, sejam elas filosóficas, sejam elas pragmáticas. E a onda da vez é o pós-modernismo.


Pós-modernismo ou pós-modernidade ainda não tem consenso conceitual, mas a maioria dos estudiosos concorda que o movimento intelectual é uma insurreição contra os postulados pétreos da filosofia clássica como a racionalidade, a lógica formal, a pretensão de verdade e objetividade, a metafísica e as chamadas metanarrativas como as grandes ideologias que dirigiram o mundo na modernidade. Poderíamos dizer de outra forma: a questão gira em torno de se decidir por um dos pares de opostos que existe no Ser, o que na verdade remonta ao velho problema do dualismo na filosofia:


Uno/Múltiplo; Deus/mundo; absoluto/relativo; unidade/pluralidade; alma/corpo; inteligível/sensível; realidade/aparência; universal/particular; necessário/contingente; formal/material; subjetividade/objetividade; racional/empírico; teoria/prática; liberdade/determinismo; ideal/real; interior/exterior; civilização/natureza; espírito/substancia; uniformidade/multiformidade; perenidade/mudança; vida/morte; existência/nada; infinito/finito; eternidade/cessação, etc.


Parmênides de Eléia(530 – 460 a.C) é um dos culpados por isso quando estabeleceu o princípio da identidade: “O que é, é”, constituindo um lado dos opostos; Heráclito de Éfeso(540 – 470 a.C.) é o responsável pelo outro lado quando asseverou o princípio da pluralidade: “tudo muda”. Platão foi o primeiro a tentar resolver o problema criando dois mundos distintos na sua teoria do conhecimento: o inteligível e o sensível; Aristóteles tentou outra solução, procurando eliminar a distinção de Platão; ao invés dos mundos serem distintos, eles são sobrepostos; a forma e a matéria se desdobra em ato e potencia. Depois destes, qualquer um que fosse pensar a realidade, ou era platônico ou era aristotélico.


Até a modernidade, os filósofos continuaram tentando resolver este problema procurando enfatizar a função que os dois lados desempenham, mas sempre valorizando um em detrimento do outro. Platão(428-348 a.C.), todos os filósofos cristãos, Descartes(1596-1650), Berkeley(1685-1753) argumentavam que a idéia era superior à matéria. Estes fundaram o clube dos racionalistas. Demócrito de Abdera(460-370 a.C.), Locke(1632-1704), Hume(1711-1776), os empiristas e todos os positivistas defendiam que a matéria era superior à idéia. Estes fundaram o clube dos materialistas.


Um grande número de mentes brilhantes na tradição filosófica, se debruçou sobre este problema e gastaram a maior parte de suas vidas - senão toda ela - e de seus preciosos esforços mentais pra tentar resolver este impasse. Também é fato que até agora ninguém conseguiu um resultado satisfatório, motivo pelo qual este problema ainda gera uma avalanche de outros bons pensadores a, inutilmente, tentar um armistício. Mas já podemos perceber que toda a discussão gira em torno de uma guerra pelo conhecimento da realidade. É o que a filosofia chama de questão metafísica. Os metafísicos eram os caras que diziam poder conhecer a substancia original das coisas, a realidade última do mundo. Daí é que as questões giram em torno de: É possível ou impossível conhecer a verdade? Se for possível, qual o instrumental para isso: a idéia ou a matéria? Já dá pra notar que não temos nem sinal de trégua no horizonte. E olha que não tocamos ainda em um ponto de fervorosa discussão na historia da filosofia - tão bem introduzido por Sócrates(469-399 a.C.) quando este resolveu discutir o que é a virtude: este problema é a moral. Pois, apesar da discussão de conhecer o mundo esteja vinculado aos problemas de subjetividade/objetividade, estes, tem sim, desdobramentos éticos decisivos, como o problema da heteronomia/autonomia. De maneira simples, a questão reza o seguinte: o meu agir deve ser determinado por uma lei externa, transcendente ou eu mesmo devo tomar minhas próprias decisões racionalmente?

Retornando a questão do conhecimento, poderíamos tentar observar outra ênfase nessa discussão, que são os que tentaram resolver o impasse diluindo tudo numa só coisa: o monismo. Como não há nada novo debaixo do sol, Tales de Mileto(624-556 a.C.), considerado o primeiro filósofo, foi quem, em busca de um princípio único para a realidade, propôs a questão no seu aforismo “tudo é água”. Spinoza (1632-1677) dizia que só havia uma substancia: Deus e suas modalidades; Leibniz(1646-1716) teorizou a mônada(unidade em grego), uma entidade que se transmorfava em tudo o que existe, tal como a combinação "zero" e "um" na linguagem da computação que se transforma em palavras, movimento, sons, imagens, cores, etc; Kant(1724-1804) visualizava um ponto no horizonte da mente onde as categorias se encontravam com as intuições sensíveis para forjar conceitos; o idealismo alemão e, por último, Hegel, o melhor vendedor da dialética, ou seja, da síntese dos opostos(tese/antítese), jogou tudo no caldeirão do absoluto, declarando “o ideal é real e o real é ideal”.


Outros resolveram que a guerra era insana e o melhor era escolher um dos lados em detrimento do outro. Marx(1818-1883) decidiu que o que há é a matéria e suas determinações econômicas, sociais e ideológicas; Nietzsche(1844-1900) afirmou categoricamente que “fatos é o que não há: há apenas interpretações”. Kierkegaard(1813-1855), Heidegger(1889-1976) e Sartre(1905-1980) resolveram viver a “vida como ela é”, ou seja, a existência nos intima a nos afirmarmos autenticamente nela, com suas pulsões e paixões: Abaixo a Razão e seus conceitos!!!; e a Hermenêutica reduziu tudo à subjetividade e linguagem. No esteio destes, que já são considerados espécies de fundadores do relativismo pós-moderno, os intelectuais, a mídia, os formadores de opinião também resolveram decidir por um dos lados; O que diz o pós-modernismo? Como bem constatou Gianni Vattimo, é a declaração de falência dos fundamentos; ora, se “Deus morreu” e a metafísica foi sepultada junto com Ele, não há mais verdade nem absolutos o que resta senão o lado oposto? Devemos valorizar agora a relatividade do nosso discurso; respeitar a pluralidade das vozes que nos chegam; estimar o particular, o indivíduo em detrimento das massas; e, conviver, não mais com o contraditório e sim, com as diferenças. Com a desilusão da razão e a desistência da busca da verdade instaurou-se o “faça o que tu queres, porque é o tudo da lei”, como queriam os apóstolos da Sociedade Alternativa. Mais, devemos nos insurgir contra toda tentativa de idealismo ou quem quer que defenda ainda os absolutos.


Não nos enganemos. Esta mesma controvérsia dualista se repete na teologia e na vida da igreja nos seus termos próprios. Porventura, há algo mais dialético do que a discussão sobre a Unidade e Pluralidade de Deus na Doutrina da trindade; transcendência e imanência divina; As Duas Naturezas de Cristo: divino e humano; conciliação entre Velho e Novo Testamento; Palavra de Deus e palavra do homem; Graça e Juízo; Predestinação e Livre Arbítrio; santo e pecador; Palavra e carisma; razão e emoção; ater-se ao céu e viver na terra; criação caída e redimida; mundo sacro e mundo profano; o “já” e o “ainda não” escatológico? Ora, da mesma forma que no ambiente da filosofia secular, uns continuam a tentar insistentemente, resolver o dualismo e, outros desistem do problema, os quais, geralmente optam pelo relativismo, assim também na vida da igreja. Há os que continuam a apostar na teologia, seguindo eternos leões de chácara da ortodoxia e da metafísica cristã e há os que desistiram da questão e optaram pelo lado da pragmática, do particular, da vivência, da existência, do cotidiano e do dia-a-dia da igreja sem se preocupar mais com tais assuntos transcendentais. Na vivência da igreja, falta-nos um Aristóteles para nos mostrar "o caminho do meio" ou um Hegel para nos ensinar a pensar dialeticamente?


Mas, de uma forma ou de outra, não há como fugir do fato de que a fé convoca terríveis questões acerca da espiritualidade e da materialidade que a maioria de nós não sabe lidar. Então, acabamos num dilema: ou vemos Jesus divino demais ou humano demais; ou nos santificamos e nos isolamos do mundo, ou pecamos descaradamente; ou nos tornamos bibliólatras com demasiada ênfase na Palavra ou nos tornamos sensitivos, místicos e supersticiosos; de um lado dizemos que a missão precípua da igreja é a evangelização, por outro, a responsabilidade social; hora somos espirituais, hora somos materiais, ambas as posições sustentados com citações bíblicas.


E a igreja como vai? Basta olhar para a babel hermenêutica estabelecida; à pluralidade de vozes ungidas que nos aliciam; aos milhares de ministérios independentes que surgem a cada dia; ao ódio a tudo o que é institucional, história e tradição cristã espalhado em todos os cantos; às tentativas de refundamento da fé, com a pretensão do Ad Fontes neo-testamentário e ao absoluto desprezo pelas Escrituras em favor da experiência. E o que dizer das chamadas “igrejas emergentes”? Ora, nossa maneira de ser igreja está estritamente ligada ao espírito do pós-modernismo. Podemos não admitir, mas o nosso modus operandi (Modo de trabalhar), nosso modus faciendi (Modo de fazer) e nosso modus vivendi (Modo de vida) são flagrantes em denunciar a nossa relatividade conceitual, doutrinária e institucional. Assim, estamos sendo levados pela enxurrada das mais diversas formas de ser igreja que pululam mundo afora.


Como dito acima, esta visão de mundo acarretou dois fenômeno distintos, mas interligados que é a) a ojeriza a qualquer forma de instituição, visto que esta é a fiel representante das formas estanques, da perenidade, da imobilidade, da tradição, da ortodoxia e das verdades eternas; e, por outro lado, b) a busca de um cristianismo mais “puro” que, acredita-se, ser o do chamado período da igreja primitiva - aliás, todo movimento de avivamento que eu conheço usa esse mote: “retornemos à igreja do primeiro século”, sem que, quem propõe não queira abrir mão de uma cadeira da sala para cumprir Atos 2:44,45; 4:32-35. Além do que, o que não falta são refundadores da fé cristã. “Está tudo errado, eu sou o único certo” braveja o desbravador-refundacionista-messiânico. Isto é velho, mas está cada vez mais em moda nos dias atuais, devido mesmo a essa pulverização de vozes autônomas por causa da falência da unidade, tradição e história cristã.


Mas, o que fazer? Devemos desistir realmente dos universais e aquiescer ao relativismo dos novos tempos? Pelo fato do Cristianismo histórico e institucional ter errado bastante, não há nele nada que se aproveite? Devemos negá-lo com toda a veemência do nosso ser ou interpretá-lo dialeticamente? Por outro lado, devemos negar os avanços da filosofia na história? O movimento pós-moderno tem algo a ensinar pra igreja? Há algo a ser considerado?


Yahweh, literalmente, “Eu Sou Aquele que É”(Êxodo 3:14) é uma bela versão de princípio de identidade expresso no nome divino revelado a Moisés. Jesus, enquanto intersecção entre o divino e o humano é um excelente problema dialético para a teologia. Talvez pudéssemos começar por aí. Mas isso eu deixo, pós - modernamente, a quem esta reflexão despertar de seu sono.



quinta-feira, 3 de setembro de 2009

OS MERCADORES DA IGREJA

“Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça daí” (Mateus 10:8)

"Porque nós não estamos como tantos outros, mercadejando a palavra de Deus...”(2Co 2:17)

Qual seria a reação de Jesus se, hoje, ele adentrasse num desses shoppings gospel ou assistisse a um programa de TV evangélico? Ele se depararia com uma avalanche de ofertas de pulseiras, CDs, DVDs, bonecos, bolsas, bonés, adesivos, sandálias, roupas, anéis, botons, água do rio Jordão, óleo de Israel, miniaturas da arca da aliança, etc., com o seu “nome” escrito; todos com a intenção de serem consumidos pelos cristãos. Um mercado autônomo, gigantesco, em nome da fé. A cena se assemelharia a dos “mercadores do templo” de sua época, com uma roupagem moderna e tecnológica é claro, mas com a mesma intencionalidade. Além dos produtos, arrecada-se em eventos, congressos, conferências, caravanas com peregrinações à Terra Santa, edição e venda de livros e revistas, etc., a criatividade não tem fim.

Um dia desses, diante de uma banca de revistas, li uma chamada de capa num folhetim, sobre como ganhar dinheiro no filão gospel. Folheei rapidamente a dita reportagem que ensinava a fazer miçangas, pulseiras, anéis, camisas e brincos com a temática evangélica e com certeza de lucro rápido. Vejam, que até a mídia secular já percebeu o disparate. Sem contar que o material evangélico – em especial livros, CDs e DVDs – são mais caros do que os seculares. Não é à toa que cada denominação ou "ministério" tem sua própria editora, livraria, gravadora e distribuidora dos seus “produtos”.

A verdade é que, neste quesito, estamos como nos dias de Jesus com a vulgaridade dos sacrifícios e ofertas no templo e, ao mesmo tempo, na idade Média com a chamada venda de relíquias e indulgências, a qual consistia em oferecer ao fiel piedoso uma lasca da cruz de Cristo, um pedaço de um vestido dos discípulos, ossos de santos e por aí vai. O propósito é o mesmo. Na palestina do século I, o templo tinha virado comercio; na idade média, durante o Pontificado do Papa Leão X, o dominicano Johan Tetzel vendia o perdão dos pecados para construir a basílica de São Pedro; hoje, a arrecadação serve para o enriquecimento e manutenção da saúde financeira de um pequeno grupo de “empreendedores” evangélicos que vivem viajando para a Europa, comprando propriedades lá fora e, como eles mesmos dizem, "comendo o melhor da terra".

A desculpa para a venda e exploração de produtos no mercado é de que não há subsídios de lugar algum para fomentar a igreja. Mas o que vemos é que existe uma grande margem de lucro nos produtos que visa o enriquecimento e não a edificação da igreja. Por exemplo, a Bíblia deveria ser o livro mais barato: a palavra de Deus ao alcance de todos, no entanto, poucos podem comprar certas Bíblias que são postas à venda.
Falando em Bíblia, ela está sendo usada para as mais variadas arrecadações: da culinária à medicina, encontramos Bíblias recheadas de dicas para o dia-a-dia ou de como administrar as finanças pessoais ou empresariais. Aliás, cada vez mais nas chamadas Bíblias de Estudo estreita-se o espaço do TEXTO bíblico. Povoa-se a página de notas, comentários, estudos concisos e mapas, de maneira que fica muito difícil se concentrar na leitura do texto propriamente, sob pena de, a todo momento, a atenção estar voltada para as famigeradas notas explicativas. Em tempo, há excelentes Bíblias de estudo que, numa proporção razoável se utiliza de auxílios ao leitor.

Outra coisa: nenhum outro aspecto do fenômeno cristão mostra a descarada apropriação indevida e a má utilização da fé e do nome de Jesus como neste “mercado” evangélico. São verdadeiros mercadores da igreja, tornando-se milionários sem precisar pagar "direito autoral", pois, livros e músicas antigas são reeditados e lançados numa nova roupagem sem que se precise pagar nada a ninguém. É lucro bruto. Nossos televangelistas(?), a exemplos dos norte-americanos, são excelentes marqueteiros e arrecadadores de vultuosas somas de dinheiro. Com o pretexto de ajudá-los a “pregar” o evangelho, intimam os telespectadores a se tornarem “parceiros”, “associados”, “semeadores”, “sócios”, etc. Mas, o ouvinte fiel realmente não sabe em que, verdadeiramente, foi empregado tantas somas, visto que não há prestação de contas e nem publicidade de relatórios. Esta é a parte mais negra do problema, ou seja, não há transparencia neste negócio. Nenhum destes que arrecadam, tem o brio de expor sua contabilidade – o que seria o mínimo justo – para que seus mantenedores pudessem contribuir com transparência. Assim, é uma pena que o Estado não possa fiscalizar tanto dinheiro. Exemplo oposto, os missionários que não arrecadam tanto, vivendo de minguadas ofertas, enviam mensalmente “relatórios de campo” às igrejas e membros que, na maioria, estão completamente indiferentes à sua situação.

Infelizmente, para muitos que estão nesse ramo do mercado, estão aí, porque viram uma excelente oportunidade de enriquecimento com o produto alheio: o nome de Jesus. Hora, é um filão estonteante: são 30 milhões de consumidores “fidelizados”, com um movimento de mais de R$1 bilhão de reais por ano, segundo matéria publicada encontrada neste link http://noticias.gospelmais.com.br/mercado-gospel-movimenta-r-1-bi-no-pais.html, ou o que a revista IstoÉ Dinheiro(set/2003) publicou constatando que "o mercado de produtos religiosos ignora a crise. Cresce 30% ao ano, move 800 empresas e gera receitas de R$ 3 bilhões". Conforme os dados da própria revista:

- 100 milhões de reais é o valor que a música gospel rende às gravadoras;
- 14% dos CD's vendidos no Brasil são de cantores ou grupos religiosos;
- 139 milhões de reais é quanto faturou o mercado literário cristão;
- 8 milhões de bíblias comercializadas em 2002. O País exporta o livro sagrado para 30 países;

Não precisa muito esforço para mostrar que, para os líderes-empreendedores-evangélicos, não existe lugar melhor no mundo.

Mas esse problema é bem antigo. Demétrio, o ourives também lucrava com os nichos da deusa Diana (Atos 19:24); Pedro teve que repreender severamente Simão, o mágico, que quis comprar o Dom do Espírito Santo, provavelmente para revender(Atos 8:18); Paulo teve de lidar com um grupo que “descobriu” que “a piedade é fonte de lucro” (ITm 6:5) e a Igreja Católica já lucrou e ainda lucra bastante com a fé. Contudo, a questão posta à todos os que se renderam à lógica do capital é: fui curado, porque tenho que vender meu testemunho? Recebi a cura de graça! Deus me iluminou e me deu uma mensagem daquelas; porque tenho que negociá-la? Deus me deu uma voz maravilhosa porque meu cachê é tão caro e os meus CDs e DVDs custam o olho da cara? Não recebi pela Sua graça? Como diz Paulo “e que tens tu que não tenhas recebido?” (1Co 4:7b). Ou alguém pensa que tem algum mérito diante de Deus para cobrar pelos seus serviços?

Por isso, se Jesus nos visitasse por esses tempos, creio que ele sacaria o seu arrozague com a mesma fúria e indignação de antigamente, e o que ele disse naquela ocasião, seria bem apropriado para hoje.

“De graça recebestes, de graça, daí”.

Soli Deo Glori!!!!