quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A IGREJA E A PERVERSÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL


“Pois nunca deixará de haver pobre na terra; pelo que te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra” Dt 15,11
“Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes”
Jo 12:8
Desigualdades existem de todas as formas e matizes, mas nenhuma possui um caráter tão universalizante quanto a social, e isto, mesmo com a humanidade conquistando todo o progresso científico, tecnológico e de conhecimento jamais visto. As relações sociais evoluíram também juntamente com as instituições políticas. No entanto, mesmo nesta modernidade, “a democracia cria, no plano formal, uma igualdade perante o Estado e as Leis. No plano legal ou abstrato, todas as pessoas são iguais, mas no plano concreto das relações sócias, são desiguais”[1]. Com a persistência de pobres, historicamente, no mundo, defendo que a desigualdade, esta perversão, é um “atributo” da natureza humana caída.
Quando Jesus declara que a pobreza é algo perene nas sociedades, parece um fatalista, mas prefiro ver a sua declaração como uma constatação; uma análise dura, fria, nua e crua da realidade social, como Maquiavel o fez no tocante às relações de poder. O florentino ao estudar com bastante realismo o continuum da história, vociferou que as relações políticas são sem escrúpulos, imorais, interesseiras e continuariam sendo assim pelos séculos, dos séculos, amém.
O Antigo Testamento também constata a realidade da pobreza. Está abarrotado de textos falando sobre os despossuídos, do necessitado, com leis expressas sobre eles. Fato curioso, porém, é que não se encontra nenhum “esforço” nos textos para uma solução "definitiva" diante da miséria, e sim, uma espécie de tratamento misericordioso para com o pobre, auxiliando-o em sua condição. Os pobres estão aí e precisam de cuidados. (Ex 22:25; 23:6; Dt 15:7; 24,12; Sl 82:3; Pv 22,22)
Mais intrigante do que o fato de que sempre existiram pobres no mundo, é que isto resiste às melhores soluções para o problema. Nem a ideia de democracia grega, nem a influencia da igreja por mil anos na idade média com suas ordens mendicantes, nem a Reforma Protestante com sua idéia de sacerdócio universal de todos os santos, nem as revoluções burguesas do séc XVIII, nem a instituição do Estado de Direito, nem a social-democracia, nem o socialismo soviético, nem a ONU, nem A UNESCO, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nem as atuais “políticas sociais” parecem se tornar um inimigo eficaz ante esta perversão da desigualdade social. Os pobres continuam a povoar a terra e se encontram bem próximos de nós.
Lendo Atos dos Apóstolos, apenas podemos vislumbrar um lapso neste continuum fatídico da indiferença; um instante frágil, tênue e milagroso na história da igreja, onde poderíamos perceber o que seria uma sociedade de iguais, sem necessitados:
E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns (Atos 4:32)
Também observa-se o modus operandi da ação, ou seja, a maneira de como eles lidavam com a solução da questão:
Não havia, pois, entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos, e repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha. (Atos 4: 34,35)
Podemos ler mil vezes este texto, mas algo dentro de nós resiste veementemente a ele. Repartir será sempre uma superação à nossa natureza mesquinha, pois somos temerosos à igualdade. Existe um sem número de interpretações para este evento de Atos, boa parte delas quer nos fazer crer que este sistema faliu cedo, com a comunidade logo voltando ao ideal da propriedade privada e ao acúmulo. De qualquer forma, este texto deveria fazer-nos rever tudo o que sabemos e fazemos no tocante à economia, sustento e distribuição na igreja. A solução que o Novo Testamento dá ao problema da desigualdade impressionou até o líder revolucionário cubano, o qual percebeu a similaridade que existe entre o pensamento cristão e o ideal marxista. Ao receber uma Bíblia, no Chile, Fidel observou: “Aqui le­mos muitos exemplos de conduta tipicamente comunista… Cristo, multiplicando os peixes e os pães para alimentar o povo, é um belo exemplo… Nós não temos a resposta de Cristo. Mas, basea­dos na sua doutrina, tentamos fazer a mesma coisa: dar pães e peixes a todos!” (encontrado em http://www.cacp.org.br/o-comunismo-marxista/).
Também gosto muito deste texto, por várias razões. Uma delas é que, de pronto, ele exclui a ordem capitalista, pautada no determinismo econômico, na exploração do lucro, na competitividade, e na sobreposição dos interesses individuais sobre os da coletividade. O bem comum do capitalismo realmente não é o público, mas o privado, o particular, enquanto que a igreja é comunitária em tudo o que é e faz. Da mesma forma, ele exclui a ordem comunista que, em tese, advoga uma igualdade linear, uniforme, de identidade e semelhança, alheia às diferenças e capacitações do ser humano, rico em potencialidades. É claro que a igreja não advoga nem o capitalismo, nem o comunismo porque trata o problema da desigualdade com orientações que não são humanas, mas divinas
A ordem de Êxodo 16 e de Atos 4 visa uma vida coletiva onde a distribuição é proporcional à riqueza ou à pobreza de cada um. O propósito da igreja não era uniformizar as classes, nem produzir uma classe pequena de privilegiados que acumulam riqueza. Ananias e Safira não foram "obrigados" a vender sua propriedade, e sim, acabar com os necessitados, o que se traduziria no simples fato de que, os que possuem, os "abastados", deveriam repartir, de maneira espontânea, sem coação. Aqui, vê-se também que todo ato voluntário e espontâneo de doação é movido pela atuação do Espírito Santo na vida do crente. 
É verdade que não durou muito este modelo de Atos, mostrando que é da natureza humana produzir desigualdades. Logo as viúvas gregas estavam sendo distinguidas das judias e preteridas na distribuição do alimento (Atos 6:1); Em Corinto Paulo tem conhecimento de que a refeição da comunhão – o que chamamos de “santa ceia”, outros “eucaristia”, etc - era um pretexto para badernas e mais desigualdades ainda nas reuniões, pois até os que tinham boa condição financeira e comida em casa, não permitiam que os pobres se aproximassem da mesa (1Co 11: 21-29). Longe de ser “pecados ocultos”, como é a interpretação tradicional deste texto, é precisamente a desordem e o desprezo pelos pobres, que Paulo chama de “comer e beber indignamente, não discernindo o Corpo do Senhor” (ICo 11:34).
Insisto neste ponto: é atípica e antinatural a distribuição. A regra que parece ser natural é o acúmulo e a avareza, uma característica da perversão da condição humana. É contra este mal, que a partilha deve ser exemplificada, como Jesus o fez no milagre da multiplicação (Mc 6:38 ) e a coleta para a ajuda às igrejas mais pobres é digna de muito louvor, porque é um ato excepcional (2Co 8:1-4):
Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus que foi dada às igrejas da Macedônia, como, em muita prova de tribulação, a abundância do seu gozo e sua profunda pobreza abundaram em riquezas da sua generosidade, Porque, dou-lhes testemunho de que, segundo as suas posses, e ainda acima das suas posses, deram voluntariamente, suplicando-nos, insistentemente, o privilégio de participarem deste serviço a favor dos santos
Aqui Paulo vê na solidariedade com a condição do outro, a graça de Deus agindo nos irmãos da Macedônia, dando a entender que a distribuição não é um princípio humano e seu impulso é tão somente divino. Por que nós não conseguimos ver “graça” de Deus em alguém que partilha seus bens e ajuda aos necessitados? Porque o “natural” é a auto sobrevivência e a autopreservação. A avareza é tal que, quem a pratica será condenado juntamente com o adúltero, o ladrão, o bêbado, o caluniador e o trapaceiro (1Co 6:10). Ela é diametralmente oposta ao Deus que doou o próprio filho e que "a todos dá liberalmente, e o não lança em rosto" (Tg 1:5). Nas listas de condenação o avarento tem cadeira cativa (Mc 7:22, Rm 1:29, ICo 5:10, Ef 5:3, 2Tm 3:2, Cl 3:5, 2Pe 2:3,14, Hb 13:5).
Mas essa leitura passa despercebida por muitas igrejas – diria a maioria – no Brasil, justamente um país de desigualdades agudas, de condições extremas de pobreza. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, o país possui 16,2 milhões de miseráveis[2]. Talvez, a igreja brasileira acredite que o problema da pobreza deva ser dever do Estado e que é irrelevante para sua agenda.
Não foi o caso da igreja dos primeiros séculos, onde a diaconia era traduzida em assistência nas epidemias, na hospitalidade aos estrangeiros, na partilha dos bens, na compra de órfãos e escravos indesejados, na ajuda as viúvas, náufragos e presos, como recomendava um antigo documento:
Não repelirás o indigente, mas antes repartirás tudo com teu irmão, não considerando nada como teu, pois, se divides os bens da imortalidade, quanto mais o deves fazer com os corruptíveis (Didaqué, p. 27)
É necessário, pois, haver uma política social na igreja conforme a justiça distributiva do maná: “quando mediram com o jarro, quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco. Cada um recolheu tanto quanto precisava” (Ex 16:18). Provavelmente a igreja de Atos 4 estava seguindo à risca a mesma ordem quanto à distribuição, e Paulo ecoa o mesmo princípio em 2Co 8:15: “como está escrito: Quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco". Não era à toa que a igreja tinha “a simpatia de todo o povo” (Atos 2:47). Partilhar, isso sim, é um verdadeiro milagre; um incontestável sinal do Reino de Deus entre os homens.
Para concluir, “Ad Fontes!” era uma expressão latina que os humanistas da Renascença utilizavam para demonstrar que aquele modelo de visão de mundo eclesial, obsoleto, obrigava-os a buscar novas interpretações da vida, da existência, da ciência, arte e cultura, relendo os clássicos gregos e latinos. Penso que, no contexto evangélico atual, no que se refere aos pobres e necessitados, também estamos precisando, urgentemente, reler, sem nenhuma edição, Jesus e os apóstolos. Precisamos retornar, pois, ao Ad Fontes!!!
Portanto, responsabilidade social não é mais um, dentre os vários programas da igreja, de ajuda esporádica a moradores de rua e indigentes, mas a sua própria condição de existência, sem a qual ela mesma é descaracterizada em mais uma empreendedora instituição humana sobre a terra, preocupada com suas propriedades e suas despensas.


[1] Revista Filosofia, Ciência e Vida, Ano III, no. 36. Entrevista com Antonio Carlos Mazzeo.
[2] O conceito de miséria foi estabelecido oficialmente pelo governo federal, que resolveu considerar em estado de pobreza extrema quem ganha até R$ 70 por mês. Encontrado em http://noticias.uol.com.br/politica/2011/05/03/brasil-tem-162-milhoes-de-pessoas-em-situacao-de-extrema-pobreza.jhtm

Um comentário:

  1. Eu tenho percebido exatamente esta "anomalia" no meio das igrejas. Ela sempre perpassa pela "Inquestionabilidade" de líderes obstinados, objetivando a hegemonia eclesiástica! Realmente é comportamental, é do caráter pecaminoso, intrisceco do homem contaminado.

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