quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O BENEFÍCIO DA CRÍTICA



“quem dizem os homens que eu sou?”
(Marcos 8:27)


Essa pergunta de Jesus aos seus discípulos demonstra algo maravilhoso na sua psiquê: um auto-conceito “resolvido” - para usar uma frase da psicologia vulgar. Alguém que solicita dos outros uma avaliação de si mesmo, demonstra que não teme querer saber quais conceitos e representações as pessoas têm dele. Ao que parece, Jesus não teve um surto neurótico ao ouvir uma série de imagens deturpadas – algumas até pejorativas– a seu respeito. Sabia e estava convicto de quem ele era, e isso bastava; nem mesmo o diabo quando quis por dúvidas sobre sua filiação, o demoveu de sua identidade (Lucas 4:1-13).

Diferente de Jesus, todos nós rejeitamos a crítica. Alguns até tentam amenizar a questão forjando os termos “crítica construtiva” e “crítica destrutiva”. Porém, mesmo a crítica construtiva, “desconstrói” analisando erros para, em seguida, “reconstruir”. É fato, que para admitir erro, o mais simples possível, é necessário um exercício de consciência que só alguém que examina-se a si mesmo é capaz (ICo 11.28). No entanto, quase sempre, não queremos que nos avaliem.

O filósofo Kant, quando elabora sua Crítica da Razão Pura, utiliza o termo critica na acepção de uma ciência, a química. Seu propósito era “decompor” a razão em partes para depois “recompô-la” num todo, tendo em vista descobrir seu modus operandi, suas possibilidades e também seus limites. Nesta viagem pela estrutura interna da razão, não havia como evitar perceber erros em que a própria razão se envolve. O termo “crítica” para Kant não tinha nenhuma conotação pejorativa. Era tão somente um exercício para separar o verdadeiro do falso, a aparência da essência. A razão erra? Como não? as falácias - falsos argumentos que se pretende passar por verdadeiros - são erros de raciocínio. Tais argumentos são maliciosamente convincentes, porém, falsos.

A não aceitação da crítica parece ser da natureza humana e evidencia-se numa propensão para o dogmatismo tirânico. Uma atitude dogmática é aquela que não quer, de forma alguma, passar pelo crivo da verificação, posto que se se percebe absolutamente verdadeira. Alguém que assume tal postura gostaria que nenhuma de suas assertivas, axiomas, idéias, ponto de vista, conselho, “sugestão” ou ordem, fossem jamais questionáveis ou questionados. Esse dogmatismo pode ser visto em todas as esferas do universo humano: na religião, ciência, política, esporte, cultura, jogo de cartas, relação entre cônjuges e discussão de família. Nesse sentido, desenvolvemos o que chamo de “síndrome do Fiat criativo”: o muito que gostaríamos é que as pessoas e coisas se submetessem prontamente a um pronunciamento: “Haja isto, haja aquilo”, como Deus criando no Gênesis; queremos resolver todos os problemas da vida, desde a menor dor às aflições da morte, fazer “aparecer” e “desaparecer” as coisas com uma “palavra de ordem”, sem questionamentos. Será por isso que muitos amam tanto as teologias da Confissão Positiva, do Domínio e Determinação? Muitos querem, literalmente, arranjar ordenadamente as coisas "no grito"! No entanto, a vida é muito complexa para ser descomplicada com apenas algumas afirmações com voz impostada.

Nos nossos dias, estar exposto à verificação é algo de que não podemos fugir. Somos verificados em nossa conta bancária, em nossos antecedentes criminais, pela malha fina da Receita, pelas câmeras de segurança espalhadas nos lugares mais inusitados, pelo SPC, SERASA e, pelo que eu considero a mais aguda e séria verificação, que é a opinião popular. Esta surge com o advento da popularização dos meios de comunicação e o que eu chamo de “escrutínio do discurso”. Isto porque, com a velocidade de dados e o acesso a um volume de informação no qual as pessoas estão expostas - que de tão grande torna-se indigesta - muitos não estão mais aceitando qualquer argumentação que ouvem ou lêem. Hoje, as pessoas possuem bastante informação para comparar os discursos e elaborar críticas, analisando o que ouvem. De forma que, um discurso sem um argumento convincente, válido, tende a ser visto com muita cautela ou indiferença. Isto, para alguns que gostam de exercer a autoridade (líderes políticos, religiosos) e influenciar pessoas, é uma ofensa crassa à sua “perfeição” e “poder de sua autoridade”.

Mas não o era para Jesus ou Paulo. O anúncio do evangelho de Cristo foi, exaustivamente (todos os dias), analisado e verificado pelos judeus e gentios. Os de Beréia, Lucas considerou nobres, visto que eram zelosos crivadores da pregação de Paulo. Tal fato acontecesse nos dias de hoje, os bereanos seriam considerados ou rebeldes ou alienados subversivos. Graças por Deus não ter confinado uma personalidade sadia somente a Jesus. Ouve salvação para Paulo, deve haver para nós também.

Porque devemos considerar a crítica que nos fazem? Primeiro, para não nos iludirmos de que somos a encarnação da verdade, o sinete da perfeição e o aferidor da medida. Ora, se não há nada que se contraponha a mim ou nada que resista à minha vontade, é fácil concluir que sou perfeito. Segundo, para não nos tornarmos tiranos. Esta se segue à primeira, porque uma vez que se assente na consciência o estado de perfeito, torna-se uma ofensa grave qualquer indício de pensamento contrário, distoante ou divergente, o qual deve ser eliminado “de um jeito ou de outro”, vide os julgamentos da Santa Inquisição. Terceiro, para não sermos legalistas e judicários. Ora, o raciocínio é o que segue: se sou perfeito, adquiro o direito e a autoridade de impor as minhas leis aos outros; determinar-lhes sua forma de pensar e de se conduzir, inclusive nos detalhes do seu cotidiano, segue-se daí que também tenho o poder de julgá-los, condená-los ou absorvê-los. Quarto, para, evitando todas as três primeiras razões, podermos conviver com o outro. Assumindo tais deturpações do senso de perfeição, é fácil tornar qualquer relacionamento insuportável. Não há descanso, enquanto o outro não se transformar no laboratório de experiências das manias, poderes, desmandos, tortura, opressão, surtos, paranóia, repressão, negação e anulação do 'eu'. Não haverá descanso enquanto o outro, à semelhança da obssessão do agente Smith do filme Matrix, não se tornar uma cópia fiel. Imagine conviver com alguém que se percebe como um deus, insensível às suas próprias imperfeições. Conclusão evidente: o outro é que sofre de incompletude, que vive em contradições e enganos. Dessa forma não há alteridade, não há o outro, não há próximo. Há apenas o diferente, um estranho que precisa ser subjugado.

Desse vício, sofre a classe política, os magistrados e os líderes eclesiásticos do nosso país. O político, o jurídico e o religioso querem agir arbitrariamente, sem contas a acertar ou satisfações a dar. É só observar o resultado das CPI’s, sempre engavetadas; a inacessibilidade ao Supremo e a quantidade de igrejas – a grande maioria - sem registro legal ou mesmo, ainda que sujeitas ao código civil como associações, não agem como tais: não publicam suas contas e não decidem em assembléias. Não querem duas coisas que são fundamentais para um agir transparente e público: o escrutínio e a análise. Quando se expõe criticamente uma situação política ou jurídica ou eclesiástica à publicidade ou quando se fala em órgão regulador dessas instituições, arma-se um campo de batalha, pois pretendem-se intocáveis. Mas, infelizmente, das três, o eclesiástico é a pior. O político ainda tem os ensaios morais das CPI’s, a Comissão de Constituição e Justiça, etc, o jurídico tem o Conselho Nacional de Justiça e as OAB’s, mas a igreja não tem nenhum órgão regulador – mesmo alguém com toda a honestidade e boa vontade pretendendo criticá-la, logo é demonizado - e por isso sua arbitrariedade não tem limites. Mas os tempos estão mudando com o volume de informações circundantes, então, o privilégio da imunidade eclesiástica, do "não toques em mim", e o benefício da infalibilidade e inerrância pastoral estão chegando ao fim. O sacerdote será um, dentre os demais sacerdotes iguais, orientando, guiando, em busca de um respeito, amor e admoestação mútuos, acolhimento e compreensão; a exemplo de Cristo, compassivo e capaz de se condoer das fraquezas do povo (Hb 4:15).

Na verdade, só um há que não é passível de análise e verificação, posto que é verdadeiramente perfeito: Deus. Este sabe ter autoridade sem autoritarismo, conviver sem oprimir, libertar as consciências sem temer sua própria liberdade de se expressar e que tem a ousadia serena e tranqüila de fazer a pergunta que todos possuem aversão: “quem dizem os homens quem sou?”.

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