quinta-feira, 20 de maio de 2010

UMA SÍNTESE DO CRISTIANISMO

"...portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas" Mt 7:12


Certa vez um monge solicitado a definir o cristianismo numa única frase, disse simplesmente: "ama o teu próximo como a ti mesmo". Retrocedendo no tempo, encontramos um líder religioso experimentando a Jesus com uma indagação semelhante: "Mestre, qual o maior mandamento da Lei?". Ao que respondeu-lhe Jesus: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento". Este é o grande e primeiro mandamento, o segundo semelhante a este é: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem a lei e os profetas"(Mt 22.37-40). Aqui um detalhe necessário. O termo grego traduzido por depender é "kremantai"(1) cuja tradução literal seria “a lei e os profetas se penduram nesses dois mandamentos. Esta é, sem dúvida, uma grande síntese, pois a Lei e os Profetas eram o que se entendia por Escrituras Sagradas nos dias de Jesus. Uma afirmação ousada, um reducionismo profundamente radical, visto que além da Torá, existiam cerca de 613 preceitos acumulados pela tradição, resultado de comentários dos intérpretes rabínicos. Jesus, então, diz que essa enxurrada de material reduz-se àqueles dois mandamentos.

No evangelho de Marcos 12.30,31, o mesmo fato é narrado, e um escriba faz a pergunta com mais objetividade: "Mestre, qual é o principal dos mandamentos?" Jesus, ao citá-los conclui também com objetividade "não há outro mandamento maior do que estes". Notemos alguns aspectos importantes nesta passagem: 1) a palavra-chave na síntese de Jesus é "amarás; 2) ao invés de um, Jesus cita dois mandamentos e os nivela; são idênticos; 3) Estes dois mandamentos não são tirados do Décalogo – a principal parte da Torá. Um faz parte da shemá Israel, a importante oração de serviço no judaísmo, encontrada em Dt 6.4, e o outro, em Lv 19.18, um livro estritamente técnico; 4) o escriba corrobora a resposta de Jesus quando diz que amar a Deus e ao próximo é “mais do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc 12.33). Aqui já se delineia o primeiro motor que irá pôr em movimento toda a vida, obra e pregação de Jesus. Com a interrogação do escriba, eis a oportunidade de se elaborar não somente a síntese do Cristianismo, como anunciar-lhe a sua essência, não somente da sua estrutura doutrinária, mas o cerne de sua espiritualidade. A razão de seu ministério não é outra senão despertar no coração dos homens a vivência de amarem a Deus e uns aos outros.

O excepcional dessa passagem é que Jesus coloca ao lado do “maior” e “principal” mandamento, o do amor ao próximo. Este, o segundo, é semelhante ao primeiro; o termo grego é "homoia"[2] literalmente, “com a mesma natureza, sujeito às mesmas condições, tão poderoso como, igualmente importante”. Está na ordem de segundo porque “... Ele nos amou primeiro...” (IJo 4.19 ), porém em nada é inferior; antes, é um outro igual, com a mesma abrangência, poder de ação, exigência de obediência. São recíprocos, participam da mesma essência, são uma via de mão dupla, com cada um sendo referencial do outro. O amor a Deus é refletido no amor ao próximo e vice-versa. Quem ama o próximo prova que ama a Deus, e se queremos servir a Deus, devemos servi-Lo no próximo.

Então Jesus declara algo que deve ter escandalizado seus ouvintes judeus: “destes dois mandamentos, dependem a Lei e os Profetas”. Ora, com a pergunta do doutor da Lei, infere-se que os fariseus sempre debatiam a prioridade entre os mandamentos, devendo haver muita divergência entre mandamentos “pesados” e “leves”, “prioritários” e “secundários”. Havia a Tradição dos Anciãos, um sem-número de interpretações que adquiriam caráter normativo-jurídico no dia-a-dia, como bem nos atesta Marcos 7.3-4. Para um povo que guardava minúcias de tudo quanto estava escrito, a declaração de Jesus deveria ser, no mínimo, confusa. Bastava o cumprimento de dois preceitos apenas para se cumprir tudo quanto as Escrituras prescreviam, e assim, fazer a vontade de Deus? Era isso simples assim? Porém, o mais intrigante disto, é que o escriba de Marcos 12.33 sabia disso e o jovem rico de Lucas 10.25-37 também. Quando Jesus, maieuticamente[3], pede que ele responda à própria pergunta acerca de como se obtém a vida eterna, ele responde “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo” (v. 27). A questão era que eles – presos à religiosidade e ritos - estavam impossibilitados de cumprirem o preceito do amor, mais especificamente, do amor ao próximo. Jesus os acusou de violarem o sexto mandamento quando disse “não vos deu Moisés a Lei? Contudo ninguém dentre vós a observa. Por que procurais matar-me?” (Jo 7.19)

“...a Lei...”

Jesus é categórico em dizer que tudo o que Moisés ordenou na Lei, bem como a ousada intimação dos profetas à conversão, só é legitimado e passa a ter sentido na existência, se antes forem cumpridos os Dois Mandamentos. Se o Decálogo (Êxodo 20.3-17) é a parte mais importante da revelação das escrituras, ele está resumido nestes dois mandamentos. Amar a Deus intensamente nos faz cumprir com a primeira parte do Decálogo que trata da religiosidade: 1) não terás outros deuses, 2) não serás idólatra, 3) não tomarás o nome do SENHOR em vão, 4) lembra-te do dia de sábado. Amar o próximo nos faz cumprir com a segunda parte do Decálogo que trata das relações comunitárias, sociais, pois concerne às esferas de relacionamentos possíveis entre o homem e seu semelhante: 5) honrar pai e mãe, 6) não matarás, 7) não adulterarás, 8) não furtarás, 9) não dirás falso testemunho, 10) não cobiçarás coisa alguma do teu próximo. Daí que Paulo, e todas as demais listas do Decálogo no Novo testamento afirmam isso. Paulo dirige-se aos romanos nos seguintes termos: “com efeito, quem ama o próximo tem cumprido a lei...o amor não pratica o mal contra o próximo, de sorte que o cumprimento da lei é o amor” (Rm 12.8-10), E para desespero dos judaizantes, religiosos e ritualistas em geral, escreve aos Gálatas: “porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5.14). O amor é o “caminho mais excelente” (ICo 13.1) e, segundo Tiago, amar o próximo é a “lei régia” da Escritura (Tg 2.8), ou seja, a Lei do Amor reina sobre todas as demais leis.

“...e os Profetas...”

No decorrer da história de Israel, o ministério dos profetas foi marcado pelo combate à idolatria. Exigiam da nação um retorno obediente à Lei de Moisés, no que concerne à adoração a Deus e não aos ídolos. Mas os profetas também denunciavam o pecado contra o próximo, a injustiça (Is 58.6,7), a desigualdade, a opressão, a maldade (Amós 1.11; 2.6, 7; 5.11,12; 8.4,6). A degeneração espiritual nos períodos negros da religião de Israel evidenciava-se por duas situações que negligenciavam exatamente o amor a Deus com a idolatria e o amor ao próximo com as explorações e opressões sociais (Os 4.12; 11.7, Hc 1.1-4, Zacarias 7.8-10). Assim, tanto a Lei como os Profetas tinham um único objetivo, um ministério com a mesma intenção, pois o caráter de ambos é o mesmo; trazer Israel de volta ao amor a Deus e ao próximo.

Um outro aspecto a ser considerado é que para Paulo a Lei era um pedagogo de Deus (Gl 3.24) com a provisória função de preparar e conduzir o homem à máxima revelação cristã. As coisas da Lei são “sombras” da realidade que é o Cristo (Cl 2.17, Hb 8.5; 9.5) Porém, essa lei seria substituída por uma fé que atua pelo amor (Gl 5.6). Então Paulo reduz ainda mais a essência da fé. O apóstolo considera os dois mandamentos tão unos e idênticos que cita apenas o “... amarás ao teu próximo...”(Rm 13.9). A minha relação com o outro passa a ser a prova e a medida do meu relacionamento com Deus. A vontade de Deus é realizada no meu trato com o próximo. De maneira que é uma contradição para João dizer que amo a Deus e concomitante, odeio o próximo, pois “qualquer que... não ama a seu irmão não é de Deus” (IJo 3.10) e “aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor (IJo 4.8). Mais contundente ainda é a frase de Jesus quando diz “nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13.35). Paulo é cada vez mais ousado, quando afirma que nenhum outro mandamento se sobrepõe a este, e como que num delírio diz que “se há qualquer outro mandamento tudo nesta palavra se resume: amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13.9). Eis a absolutização de toda a moral ou jurisprudência religiosa; tudo é circunscrito no preceito. Qualquer lei, ordenança, estatuto, comportamento ou costume, de qualquer povo ou cultura, conhecido ou desconhecido está previsto e encontra sua plena realização na lei do amor. Todas as demais leis que, porventura, governam as relações humanas, encontram nela guarida. Está aqui o fim de todo legalismo, rito ou sacrifício que se pretende fundamental para se conhecer a Deus, mas que prescinde do amor. Este é necessário e suficiente, basta-se a si mesmo e satisfaz plenamente a Deus.

O amor anula a lei e o pecado e torna-se a norma para todo relacionamento. A relação lei/pecado está descrita por Paulo em Rm 7.5-13. Segundo o apóstolo as paixões pecaminosas eram “postas em realce pela lei... afim de frutificarem para a morte”(v. 5). Devido ao fato de eu ser “vendido à escravidão do pecado”(v.14), este se apodera desta realidade e torna a lei sua aliada. A lei então só serve para fazer um diagnóstico do mal que há em todo homem, um raio "X" da maldade, mas não lhes dá o remédio. Porque? Porque o homem é incapaz de cumpri-la, devido a sua natureza de pecador. Ora, o pecado se identifica intimamente com a lei ao ponto de Paulo dizer que “sem lei, está morto o pecado” (Rm 7.8). De maneira que, os limites de atuação do pecado são os mesmos de atuação da Lei. Logo, o Ministério do pecado é fazer o homem se rebelar contra Deus e contra o próximo. Ou seja, fazê-lo transgredir os dois mandamentos. E aqui, entra um outro personagem em cena, formando uma tríade de maldição. A relação agora é morte/pecado/lei; Paulo descreve-a assim “o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei” (ICo 15.56). Agora é a morte e o pecado que estão atrelados a lei. Porém, posto que o amor ao próximo cumpre a lei, logo derrota o pecado e a morte também. Eis a solução de Deus.

Não é à toa, que as listas de pecados encontrados no Novo Testamento, são contra Deus e o próximo[4]. Não é por menos que este cuidado com o outro está continuamente na agenda dos apóstolos. Em Rm 14, Paulo, magistralmente ensina a tolerância no meio da igreja e o cuidado para com o semelhante: “Quem és tu que julgas o servo alheio? (v. 4) ... Tu, porém, por que julgas teu irmão? E tu, por que desprezas o teu? (v. 10) ... tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão (v.13) ... Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu (v. 15) ... Não destruas a obra de Deus por causa da comida (v.20)”. Tiago também denuncia o paradoxo acerca da religiosidade que diz amar a Deus e, no entanto odeia os homens, aqui retratado no poder da língua: “Com ela, bendizemos ao Senhor e Pai; também, com ela, amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus” (Tg 3.9); e João testifica isso escrevendo que, quem ama a Deus, ama também sua criação, pois “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido”(IJo 5.1). Paulo é mais assertivo quando diz que “nesta matéria, ninguém ofenda nem defraude a seu irmão, porque o Senhor contra todas essas coisas...é vingador” (I Tss 4.6). assim, peca-se muito mais contra Deus por meio do próximo, do que diretamente contra Ele.

Segundo Paulo, em Cristo, Deus “condenou na carne o pecado” (Rm 8.3), e fez habitar o Espírito Santo no homem para que “mortificássemos os feitos do corpo” (Rm 8.13) de tal maneira que “o preceito da lei se cumprisse em nós” (Rm 8.4). Ora, do que foi dito, o preceito só se cumpre em nós quando amamos, assim, é dessa maneira que "a justiça de Deus se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8.4) agora. Na lista de obras da carne em Gl 5.19-21, encontramos pecados contra Deus (idolatria, feitiçarias), e pecados contra o próximo (ira, discórdias, invejas, dissenções, facções, porfias), da mesma forma que os frutos do Espírito são ferramentas que nos capacitam a amar o próximo (amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio), daí Paulo concluir: “contra essas coisas não há lei” (v.23).

Mas é em Jesus que vemos a encarnação do cumprimento dos dois mandamentos. O Mestre amava a Deus intensamente e, ao próximo não julgou, não agiu com preconceito, não discriminou, mas deu a própria vida. Tal exemplo também serve de pedagogia para nós; “sede meus imitadores, assim como sou de Cristo (ICo 11.1); somos chamados para sermos e agirmos como Jesus: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8.29); devemos imitá-lo mesmo na sua mais radical entrega: “nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos” (IJo 3.16). A suma é que não há desculpas por ignorância para cumprirmos o novo mandamento: “novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros” (Jo 13.34). É novo mandamento porque o referencial de amor ao próximo é deslocado de mim mesmo para o exemplo do amor de Cristo. Dessa maneira, Deus já nos forneceu tudo de que precisamos para termos vida, e vida em abundancia(Jo 10.10), pois Ele condenou na cruz o pecado, anulou os feitos do corpo pelo Espírito e em Cristo, temos o exemplo para vivermos a essência da espiritualidade. Mas não basta saber, o que importa é viver. É o que Jesus diz a quem o respondeu corretamente acerca da síntese: "faze isto e viverás"(Lc 10.28) ou tendo paciência com a insistência do intérprete da lei que persistia em não querer entender. Após contar a extensa parábola do bom samaritano, com o intuito de tornar o conceito do amor ao próximo o mais compreensível possível ao intérprete, disse: "vai e procede tu de igual modo" (Lc.10.37).

Nesses doil mil anos de história, o cristianismo poderia ser lembrado de maneira mais sublime se os seus construtores tivessem, entendido ... Não!, pois todos a entendem ... tivessem vivido a síntese de Jesus. Se assim fosse, ter-se-ia evitado a Inquisição com suas torturas, forcas e fogueiras, as Cruzadas e cidades inteiras arrasadas, os massacres protestantes e suas guerras com os Católicos, a invasão e destruição de povos inteiros por países ditos cristãos; dogmas, fardos e especulações doutrinárias que exigem dos fiéis tantas cerimônias e rituais em detrimento do amor ao próximo. Como a igreja mudaria o mundo se tornasse efetiva na sua vida a súmula do Decálogo: Deus e o semelhante. Pois, o que passa disso, é religião; contudo é mais trabalhoso amar do que fazer holocaustos e sacrifícios.



[1] GINGRICH, F. Wilbur. Léxico do Novo testamento Grego/Português. Vida Nova, 1979, pág 121.

[2] Idem, 146.

[3] Maiêutica, do gr “parto”. Método socrático que consistia em levar o elaborador da questão a encontrar a resposta em si mesmo, no seu próprio raciocínio.

[4] (Mc7.21,22, Rm 1.29-31, ICo 6.9,10, Gl 5.19-21, ITm 1.9,10, IITm 3.2-4, Tt 3.2,3, Apoc 21.8)


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